sábado, 12 de julho de 2014

"Mau trato? hmm... Será?"

   Quando se fala de mau-trato sobre animais, do mesmo modo que sobre humanos, visualizam-se situações em que as acções sobre o animal resultam em lesões exuberantes, normalmente traumáticas.
Felizmente a maior parte dos casos de lesões traumáticas vistas na prática clínica diária, não são resultado de agressão ao animal, no entanto é de esperar que pelo menos uma vez na sua vida profissional o Médico Veterinário seja confrontado com uma situação de mau trato. O mau trato pode ser evidente, como tal, ser confundido com lesões acidentais ou não ser evidente embora exista.

Porque é que nem sempre as situações de mau-trato são reconhecidas pelo Médico Veterinário?
  Uma das razões apresentadas, dependente de nós próprios, é termos dificuldade em aceitar (bloqueio emocional) que alguém seja cruel ao ponto de infligir propositadamente lesões a um ser vivo que coabita ou partilha uma vivência comum, seja ele humano ou não-humano. Do mesmo modo que a Violência Doméstica ou o Mau Trato de Menores ou de Idosos é algo conhecido por todos, num contexto geral, mas mais difícil de reconhecer se implicar pessoas mais próximas do círculo pessoal ou profissional: um familiar, um amigo, um cliente habitual.
  Outra razão é a crença que um detentor não recorrerá aos serviços médico-veterinários depois de ele próprio ter agredido o animal. Na maioria das vezes, mais cedo ou mais tarde e por razões diversas, o animal acaba por ser submetido a uma intervenção clínica, ainda que nem sempre seja o agressor a levá-lo, podendo no entanto ser uma pessoa próxima, do animal e/ou do agressor. Neste último caso podemos inclusivamente estar perante uma situação em que a pessoa que leva o animal, seja ela própria vítima de maus tratos.
  Mesmo que o Médico Veterinário esteja alerta, um evento de abuso pode passar despercebido.

  O Índice de Suspeita (Index of Suspicion) auxilia o Médico Veterinário a estimar, ainda que de modo empírico, a probabilidade de estar perante uma ou várias lesões de origem não acidental (Lesão Não Acidental - LNA).
  No entanto é preciso ter em atenção que qualquer um destes factores em separado e por si só não têm significado e, mesmo que coexistam vários, é necessário fazer uma cuidadosa contextualização do evento.

Factores relacionados com a História Clínica e Lesões:
- A história é discrepante com a lesão apresentada (exemplo: fractura de osso longo, história de atropelamento - normalmente fracturas por flexão ou compressão, diagnóstico imagiológico imagem consistente com fractura por torção mais raro de acontecer  nesse tipo de acidentes)
- A história é inconsistente, mudando com o tempo ou com a pessoa que a conta
- Outras lesões ou morte de animais no mesmo agregado familiar ou do mesmo dono
- Ingresso por lesão idêntica, repetidas vezes
- Lesões não usuais
- Lesão não explicada, aparentemente sem conhecimento de como aconteceu
- Lesões em tempos diferentes de cicatrização

Atribuição de culpa:
- O cliente/detentor pode assumir a acção e culpa do abuso
- O cliente/detentor pode assumir que existiu abuso e atribuir a acção a uma pessoa próxima (companheiro, filho, amigo)
- O cliente/detentor pode assumir que existiu abuso e atribuir a acção a uma pessoa estranha (estranho, vizinho)
- O cliente/detentor pode assumir que existiu abuso mas recusar a dizer quem o perpetrou

  De notar que neste ponto de "atribuição de culpa" ela pode ser feita de boa fé, mas também pode ter uma intenção maliciosa de acusar terceiros, por isso convém relembrar, mais uma vez, que a primeira responsabilidade do Médico Veterinário é para com o animal, e embora possa ter suspeitas de mau-trato, não é da sua competência prová-la apenas, se necessário, apresentar evidência de que ocorreu e muito menos julgá-la.

Perfil do detentor/cliente:
- Cliente novo ou conhecido por procurar diversos médicos-veterinários
- Discrepâncias no nome, morada ou registo/propriedade do animal
- Conhecimento que possui vários animais apresentando uma grande rotatividade nos animais que detém
- Pode provir de qualquer classe social
- Estudos apontam para uma maior frequência do agressor ser masculino
- As crianças e jovens podem ser agressores
- Síndrome Munchausen by Proxy (Perturbação Factícia Imposta sobre Outro) também ocorre tendo um animal como vítima

Comportamento do detentor/cliente:
- Agressivo e/ou evasivo durante a recolha da história, ou quando questionado directamente sobre mau-trato
- Falta ou diminuída preocupação pelo estado do animal ou sobre a recuperação
- Comportamento estranho, no geral
- Demora em procurar assistência médico-veterinária
- Se presente na consulta o detentor legal e outros membros da família, um deles pode estar mais nervoso ou apresentar comportamento estranho
- Conhecimento de alcoolismo, uso de estupefacientes e doença mental (detentor ou círculo de pessoas próximas do animal)

Perfil e Comportamento do animal:
- No Reino Unido os animais (de estimação) em maior risco são canídeos machos com menos de dois anos, e felídeos de todas as idades. Não há estudos em Portugal, podendo variar a espécie, género e idade. 
- Comportamento de medo perante o detentor/cliente
- Comportamento de medo para com as pessoas no geral
- Comportamento de satisfação quando separado do detentor/cliente
- Mudança de comportamento com e sem o detentor presente
- Atitude de subjugação ou pelo contrário excessivamente agressivo


Embora, como já referido, não ser da competência do médico veterinário nem investigar e muito menos "julgar" casos de mau-trato, é óbvio que do desempenho das suas funções pode resultar, em algum momento, o confronto com situações de abuso e o seu envolvimento no esclarecimento dos factos.
Quando ele é o "descobridor" do abuso no desempenho das suas funções e é instigado a tomar uma decisão (algo limitada em Portugal, sob o ponto de vista legal, por via do Código Deontológico dos Médicos Veterinários) deve ter em atenção que nenhum caso é preto ou branco, existindo um gradiente de "cinzentos" que é necessário ponderar.


 
 
Anabela Santos Moreira
12 Julho 2014
 

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