sábado, 9 de agosto de 2014

Revisitando o tema da Criminalização (Parte II)

(Artigo de Opinião)

Em qualquer área forense, não médica ou médica, humana ou veterinária, o conhecimento da lei é um factor fundamental.

Não querendo dizer que os peritos das inúmeras matérias forenses sejam especialistas em Direito, é necessário saber, pelo menos, os textos mais importantes directamente relacionados com a sua área e, na medida do possível, fazer uma interpretação à luz do Direito.

O texto das leis por vezes é ambíguo pela sua abrangência e por vezes é restrito, parecendo estar formatado para uma situação específica. Há vantagens e desvantagens tanto para a abrangência como para a restrição, sendo por isso necessário, estar muito consciente dos limites, reais ou aparentes, da lei e “construir um caso” que possa situar-se dentro da “janela” legal.  
 
O novo Título do Código Penal referente aos Crimes sobre Animais de Companhia, inicia-se com o artigo 387º “Maus tratos a animais de companhia”, que é tão abrangente quanto restrito nas suas poucas linhas, excluindo obviamente o facto que se referir apenas a animais de companhia. Vejamos algumas das questões que têm sido levantadas:
 
 
 
 
Maus Tratos

Como já referido anteriormente há uma certa consistência do que, no geral, se entende por mau trato sobre animais. Mais difícil poderá ser encontrar uma definição ou conceito que todos os envolvidos num processo legal possam utilizar como base. No entanto, o próprio Código Penal (CP), no seu artigo 152º-A, fornece uma indicação, que embora não relacionado com animais, ilustra muito bem o que é considerado mau trato sobre animais em diversos países onde estes actos são criminalizados.

A utilização, quase que integral, do texto deste artigo em situações em que a vítima seja um animal de companhia é coerente (salvaguardado o Principio da Legalidade) quer com o Tratado de Lisboa que reconhece que os animais são sensíveis (artigo 13º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia) e que, como seres sencientes, são capazes de sentir sensações e sentimentos de forma consciente, quer com o Código de Saúde dos Animais Terrestres da World Organization for Animal Health (Secção 7, Capítulo7.1) onde se reconhece as “Cinco Liberdades” de Brambilla como pilares do bem estar animal.

Outra questão também levantada pela abrangência do artigo está relacionada com a “tipologia”. Considerando que a tipologia está mais focada nas características da acção e resultados do que nas características da vítima, os conceitos utilizados para os humanos, ainda que também arrastando as polémicas que este assunto gera, podem facilmente ser aplicados aos outros animais, notando-se que, pontualmente, possa haver algumas especificidades, como é o caso da acumulação de animais (hoarding), a reprodução não planificada com objectivos comerciais (puppy mills) ou lutas de animais.
O mau trato (físico ou psicológico/emocional), a negligência (física ou psicológica/emocional) e o abuso sexual, são categorias passíveis de serem aplicadas quando as vítimas são animais não humanos.

 

Motivo Legítimo

Foi considerada a retirada desta adjectivação da redacção do artigo, no entanto ela acabou por fazer parte do texto final. Convém lembrar que o título do CP se refere apenas a animais de companhia, tornando-se surpreendente a sua inclusão, estabelecendo logo à partida que, para um animal de companhia, possa haver motivos legítimos para infligir dor, sofrimento e dano.
    Assim a ”legitimidade” terá que ser fundamentada nos factos ocorridos numa determinada situação (por exemplo “legitima defesa”, quando é infligido ao animal dano físico por percepção de ofensa iminente à integridade física de outro animal, humano ou não humano), em investigação e estudos científicos (como por exemplo para as questões ligadas ao treino quando são utilizados métodos aversivos - coleiras estranguladoras, coleiras de bicos, coleiras de choque - cuja eficácia ou maior eficácia é actualmente questionável) ou outras fontes que possam clarificar a “legitimidade” da acção.

 

Afectação grave e permanente da sua capacidade de locomoção

Este poderá ser considerado o trecho mais desadequado do artigo 387º, já que começando por referir “privação de órgão ou membro” de um modo geral, apenas confere pena se, no que respeita à função, for a locomotora a afectada. Não questionando a necessidade de salvaguardar a afectação da capacidade locomotora, parece haver uma falha no acautelamento de qualquer outra função, eventualmente até com muito maior impacto na vida futura do animal.
A “privação” de um órgão pode ser vista tanto como a excisão física do órgão (exemplo enucleação do globo ocular), como perda da sua função (exemplo visão). Ao especificar a capacidade locomotora o legislador restringiu, aparentemente, o conceito de “privação de órgão ou membro” apenas à sua perda física. Na prática isso poderá querer dizer que um trauma craniano, causado por uma força contundente (por exemplo um pontapé) que lesione irreversivelmente o globo ocular sem contudo levar à sua enucleação mas que diminua ou prive o animal do sentido da visão, não poderá ser considerado para efeito do numero 2 do artigo 387º, o que parece constituir uma manifesta assimetria de critérios no que respeita à aplicação da pena.
 

NOTA: O presente texto é um artigo de opinião da autora, não podendo ser considerado como fundamentação legal, técnica ou outra para qualquer evento relacionado com o tema em análise.
  

Anabela Santos Moreira
     9 Agosto 2014