domingo, 5 de janeiro de 2014

Medicina Veterinária Forense e Mau Trato Animal

Uma das áreas da Medicina Veterinária Forense é a que respeita ao mau trato animal. Embora a expressão “mau trato animal” possa ser, para a maioria das pessoas, um conceito universal, tal não acontece.
Um dos obstáculos à sua “universalização” relaciona-se com diferenças culturais que se reflectem na percepção do que é mau trato. Outro obstáculo refere-se ao entendimento do que é um “animal”, não no sentido biológico do termo, mas sim no sentido do enquadramento legal.
Estas diferenças são de importância crucial implicando, na maior parte das vezes, leis diferentes de país para país, ou mesmo de região para região dentro do mesmo país, como acontece por exemplo nos Estados Unidos, o que obriga os profissionais desta área a um conhecimento robusto da legislação aplicável. 
 
Um pouco de História…
Embora na actualidade se fale, debata e legisle cada vez mais sobre bem-estar e protecção animal esta é uma preocupação da sociedade moderna com largas dezenas de anos, materializada em 1824, na Inglaterra, com a criação da Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA) e em 1866, nos Estados Unidos da América, com a American Society for the Prevention of Cruelty to Animals (ASPCA). Em Portugal, foi fundada a Sociedade Protectora dos Animais (SPA) em 1875 pelo Conselheiro José Silvestre Ribeiro, com um impacto na sociedade portuguesa actual bem diferente do das suas congéneres, nas comunidades em que se inserem.
A uma década da primeira associação criada para a prevenção da crueldade sobre os animais comemorar o 2º centenário, os  direitos, o bem-estar e o mau trato dos animais continuam a ser temas actuais, debatidos com paixão, por vezes discutidos com pragmatismo outras vezes com abordagens mais filosóficas.
 
 
Como se define Mau Trato?
Para Balkin, Janssen & Merck(1) o mau trato ou crueldade pode ser qualquer acto, desde importunar até à tortura, de modo intencional ou por negligência, não se cingindo apenas à comissão do acto mas também à omissão de cuidado adequado.
Este leque alargado de situações, por um lado, permite grande latitude no que, teoricamente, se pode considerar mau trato, por outro, implica que cada caso tenha que ser individualmente analisado, necessitando de um grande cuidado na sua investigação, principalmente quando é criminalizado pelo quadro normativo.
 
 
Tipificação do Mau Trato Animal
Em termos gerais podem agrupar-se as situações de mau trato animal em três grandes grupos:
                   Negligência
                   Acumulação
                   Abuso
 
Negligência. Neste grupo existem diversas situações que podem ir desde a negligência simples, não intencional, muitas vezes com o objectivo de ajudar ou “agradar” ao animal (administração de medicamentos sem aconselhamento médico veterinário, pôr ao dispor alimentos perigosos,...) mas que podem pôr em risco a saúde do animal ou negligência grave, cruel ou arbitrária (não providenciar abrigo, alimento ou água, não proporcionar auxílio médico-veterinário a um animal que se encontre manifestamente em sofrimento,...). Este tipo de mau trato é frequentemente resultado de omissão e não de comissão de um acto.
Acumulação. Verifica-se quando o número de animais detidos por um sujeito, ultrapassa largamente quer a capacidade do espaço físico, quer a capacidade económica ou de cuidado, sendo os animais submetidos a condições que não são as mais adequadas ao seu bem-estar. Muitos destes casos caiem no domínio da negligência, estando muitas vezes associados a incapacidades do próprio detentor, sejam físicas ou mentais.
Abuso. Neste grupo que, por norma, não oferece tantas dúvidas quanto a ser classificado como mau trato, incluem-se situações com grau de crueldade e violência diferentes:
Abuso intencional – quando há intenção de provocar dor, lesão, sofrimento ou mesmo morte ao animal. Pode ser perpetrado de modo pontual ou continuado, com intenção de atingir o animal ou como modo de coacção sobre terceiros, o que pode acontecer, por exemplo, num contexto de violência doméstica.
Abuso organizado – neste grupo incluem-se as situações em que o mau trato é cometido sobre o animal com o objectivo de obter vantagem, muitas vezes económica. Exemplos clássicos são as lutas de animais ou a reprodução exaustiva e não planificada com o intuito de comércio da descendência (fábricas de cachorros, puppy mills).
Abuso ritual – onde os animais são sujeitos a maus tratos em rituais, normalmente não aceites culturalmente pela comunidade.
Abuso sexual – utilização de animais para satisfação sexual do sujeito (detentor ou não) que, na sua forma mais grave, pode resultar em morte do animal por extensas lesões internas.
 
Tendo em atenção as variadíssimas situações em que pode ser considerada a existência de mau trato é de primordial importância:
   O conhecimento do quadro normativo aplicável, bem como as suas excepções;
   O conhecimento de procedimentos básicos em investigação forense;
   A capacidade de trabalhar em equipa, previligiando a colaboração interdisciplinar, indispensável na área forense.
 
Anabela Santos Moreira
5 Janeiro 2014
 


(1) Balkin, Janssen & Merck, “The legal system: the veterinarian’s role and responsibilities” in “Veterinary Forensics – Animal Cruelty Investigations”, 2013, 2ªEd., editado por Melinda Merck, Wiley-Blackwell

sábado, 4 de janeiro de 2014

A Peritagem Médico-Veterinária

   No seguimento da última entrada (ver aqui), vejamos o que o Código Deontológico dos Médicos Veterinários (ver aqui) refere no que respeita à actividade de Perito.

   No seu Capítulo VII (da Certificação, da Inspecção Sanitária, das Peritagens), Secção III (das Peritagens, artº 75 a 80) são caracterizadas as áreas onde o Médico Veterinário tem competência pericial:

"Artigo 76º
Os Médicos Veterinários, enquanto peritos, podem ser chamados a actuar, nomeadamente nas seguintes situações:
  a) Situações de litígio, em que podem representar uma das partes em controvérsia, exercerem a função de árbitro neutro, ou por designação oficial;
  b) Formulação de pareceres e decisões orientadores em relação a espectáculos ou concursos em que intervenham animais;
  c) Emissão de juízos especializados relativamente a exames de animais vivos com fins sanitários, de produção ou melhoramento, inspecção de produtos de origem animal, fiscalização das condições higio-sanitárias de instalações, e inspecção da aplicação de medidas sanitárias nomeadamente em casos de epizootias;
  d) Estabelecimento de pareceres em pleitos jurídicos, casos de polícia, peritagens de seguros e situações similares;
  e) Redacção de pareceres solicitados pelas autoridades públicas.
 
Importante também o artigo 78º:
"O Médico Veterinário, como perito, deve satisfazer as seguintes qualidades:
a) Possuir conhecimentos suficientes em relação à matéria sobre a qual se vai pronunciar;
b) Ser objectivo e imparcial;
c) Pronunciar-se unicamente acerca dos factos de que tenha conhecimento directo, embora possa reproduzir o teor de atestados produzidos por colegas devidamente identificados."
 
Que complementa o artigo 77º: "Quando o Médico Veterinário, enquanto perito, representar uma das partes em litígio tem o dever de se circunscrever estritamente à verdade dos factos sobre os quais tiver sido chamado a pronunciar-se, mesmo quando essa verdade não favoreça a parte que representa"
 
Deste modo a peritagem em Medicina Veterinária reveste-se das mesmas características que qualquer actividade pericial incluindo a vertente forense. Acresce que, em algumas situações relacionadas com os animais, o Médico Veterinário será o único profissional habilitado a emitir essa mesma perícia.

Anabela Santos Moreira

 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Do Médico Veterinário ao Perito Forense



Durante a sua formação, o Médico Veterinário adquire conhecimentos em áreas de importância relevante na área forense, embora nem sempre as matérias sejam expostas dando ênfase a esta perspectiva. Deste modo o Médico Veterinário, pelas competências inerentes à sua profissão, deve considerar-se sempre como um perito na sua área de actuação, embora a formação base não o habilite a considerar-se um especialista forense.

“...os animais podem estar envolvidos em acções legais de dois modos distintos: podem ser a vítima (i.e. o objecto) de um acto ilegal ou o instigador (i.e. o sujeito) onde é o animal que causa o incidente...  ... Os princípios básicos da investigação forense, relativamente à produção meticulosa de registos, exame sistemático e tratamento apropriado do material, é idêntico, quer a vitima seja humana ou não”[1]. Este texto sumariza de modo muito simples como o Médico Veterinário pode ser confrontado, durante a sua actividade de rotina de diagnóstico e terapêutica, com situações que, posteriormente, ao serem introduzidos num quadro legal, se tornam em casos de Medicina Veterinária Forense.

Anabela Santos Moreira (2011, Extracto da proposta de criação da disciplina opcional de Ciências Forenses em Medicina Veterinária, apresentada ao Concelho Científico da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa (antiga Universidade Técnica de Lisboa))



[1] in “Introduction to Veterinary and Comparative Forensic Medicine”, Cooper & Cooper, 2007, Blackwell Publishing (tradução da autora)

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Da Medicina Veterinária às Ciências Forenses


As Ciências Forenses, inicialmente aplicadas à espécie humana, começam actualmente a ser aplicadas a outras espécies, ainda que com recursos bastante escassos e sem reconhecimento como disciplina de especialidade.
 
“Durante muitas décadas, os membros da profissão médica, em muitos países tiveram oportunidade de adquirir treino e obter graus de pós graduação encontrando neste campo uma actividade a tempo inteiro. No entanto tem havido, comparativamente, poucos desenvolvimentos na Medicina Veterinária. Os veterinários que se envolveram na actividade forense usualmente são autodidatas ou, em alguns casos, obtêm a sua competência na oferta de qualificação na área da Medicina Humana.
A ausência de uma especialização em Medicina Veterinária Forense é surpreendente considerando que os profissionais desta área desempenham há muito tempo o papel de testemunhas periciais em tribunal em casos relacionados com animais. Ao aumentar a legislação relativa ao bem estar animal, conservação e matérias afins, bem como uma sociedade que se torna mais litigiosa nestes aspectos, especialmente nos países ocidentais, a procura de especialistas em ciência forense animal é provável que cresça e as lacunas no ensino e treino serão provavelmente colmatadas." (in “Introduction to Veterinary and Comparative Forensic Medicine”, Cooper & Cooper, 2007, Blackwell Publishing - tradução livre)
 
Anabela Santos Moreira (2011, Extracto da proposta de criação da disciplina opcional de Ciências Forenses em Medicina Veterinária, apresentada ao Concelho Científico da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa (antiga Universidade Técnica de Lisboa))

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Da Medicina Legal às Ciências Forenses



As, actualmente designadas por, Ciências Forenses, historicamente limitavam-se ao estudo médico-legal em cadáver, alargando posteriormente o objecto de estudo para o indivíduo, vivo ou cadáver. A sua aplicação à Medicina Veterinária só recentemente começa a ser entendida como importante e necessária.

Inicialmente de cariz fortemente Clínico e Tanatológico, este ramo da Medicina foi recebendo contributos das mais variadas ciências biológicas. A aplicação e o desenvolvimento tecnológico nas várias áreas conduziu a que cada uma delas, por si, adquirisse estatuto próprio e actualmente a Patologia, a Entomologia, a Toxicologia, a Genética, a Osteologia, a Odontologia, só para citar algumas, são áreas médicas individualizadas também sob o ponto de vista forense.

Este conjunto de ciências e a necessidade de dar respostas cada vez mais precisas às questões levantadas pela matéria legal, também ela em constante evolução, chama a este conhecimento, já de si pluridisciciplinar, outras áreas tais como a antropologia (no seu sentido mais lato que inclui não apenas a espécie humana mas também outras espécies animais), a criminalística, a balística e ainda outras áreas, aparentemente com pouca relação, como a botânica, a geologia, a geografia, a meteorologia, apenas para enumerar alguns exemplos. Esta pluri e interdisciplinaridade dá assim forma a uma área do conhecimento com a designação de Ciências Forenses.
 
Actualmente e talvez devido ao sentido etimológico da palavra forense (do latim forensis, que é relativo ao foro judicial, aos tribunais) as Ciências Forenses alargam-se a outras áreas biológicas como a Ecologia, mas também a áreas não biológicas como seja a Engenharia, a Cibertecnologia, a Económica e Financeira, entre outras.

Anabela Santos Moreira (2011, Extracto da proposta de criação da disciplina opcional de Ciências Forenses em Medicina Veterinária, apresentada ao Concelho Científico da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa (antiga Universidade Técnica de Lisboa))