(Artigo de Opinião)
Em qualquer área forense, não médica ou
médica, humana ou veterinária, o conhecimento da lei é um factor fundamental.
Não querendo dizer que os peritos das
inúmeras matérias forenses sejam especialistas em Direito, é necessário saber,
pelo menos, os textos mais importantes directamente relacionados com a sua área
e, na medida do possível, fazer uma interpretação à luz do Direito.
O texto das leis por vezes é ambíguo pela sua
abrangência e por vezes é restrito, parecendo estar formatado para uma situação
específica. Há vantagens e desvantagens tanto para a abrangência como para a
restrição, sendo por isso necessário, estar muito consciente dos limites, reais
ou aparentes, da lei e “construir um caso” que possa situar-se dentro da
“janela” legal.
O novo Título do Código Penal referente aos
Crimes sobre Animais de Companhia, inicia-se com o artigo 387º “Maus tratos a animais de companhia”, que
é tão abrangente quanto restrito nas suas poucas linhas, excluindo obviamente o
facto que se referir apenas a animais de companhia. Vejamos algumas das
questões que têm sido levantadas:
Maus
Tratos
Como já referido anteriormente há uma certa
consistência do que, no geral, se entende por mau trato sobre animais. Mais
difícil poderá ser encontrar uma definição ou conceito que todos os envolvidos
num processo legal possam utilizar como base. No entanto, o próprio Código Penal
(CP), no seu artigo 152º-A, fornece uma indicação, que embora não relacionado
com animais, ilustra muito bem o que é considerado mau trato sobre animais em
diversos países onde estes actos são criminalizados.
A utilização, quase que integral, do texto
deste artigo em situações em que a vítima seja um animal de companhia é
coerente (salvaguardado o Principio da Legalidade) quer com o Tratado de Lisboa
que reconhece que os animais são sensíveis (artigo 13º do Tratado sobre o
Funcionamento da União Europeia) e que, como seres sencientes, são capazes de sentir
sensações e sentimentos de forma consciente, quer com o Código de Saúde dos
Animais Terrestres da World Organization for Animal Health (Secção 7, Capítulo7.1) onde se reconhece as “Cinco Liberdades” de Brambilla como pilares do bem
estar animal.
Outra questão também levantada pela
abrangência do artigo está relacionada com a “tipologia”. Considerando que a
tipologia está mais focada nas características da acção e resultados do que nas
características da vítima, os conceitos utilizados para os humanos, ainda que
também arrastando as polémicas que este assunto gera, podem facilmente ser
aplicados aos outros animais, notando-se que, pontualmente, possa haver algumas
especificidades, como é o caso da acumulação de animais (hoarding), a reprodução não planificada com objectivos comerciais (puppy mills) ou lutas de animais.
O mau trato (físico ou psicológico/emocional),
a negligência (física ou psicológica/emocional) e o abuso sexual, são
categorias passíveis de serem aplicadas quando as vítimas são animais não humanos.
Motivo
Legítimo
Foi considerada a retirada desta adjectivação
da redacção do artigo, no entanto ela acabou por fazer parte do texto final.
Convém lembrar que o título do CP se refere apenas a animais de companhia, tornando-se surpreendente a sua inclusão, estabelecendo logo à partida que,
para um animal de companhia, possa haver motivos legítimos para
infligir dor, sofrimento e dano.
Assim a ”legitimidade” terá que ser fundamentada nos factos ocorridos numa determinada situação (por exemplo “legitima defesa”, quando é infligido ao animal dano físico por percepção de ofensa iminente à integridade física de outro animal, humano ou não humano), em investigação e estudos científicos (como por exemplo para as questões ligadas ao treino quando são utilizados métodos aversivos - coleiras estranguladoras, coleiras de bicos, coleiras de choque - cuja eficácia ou maior eficácia é actualmente questionável) ou outras fontes que possam clarificar a “legitimidade” da acção.
Assim a ”legitimidade” terá que ser fundamentada nos factos ocorridos numa determinada situação (por exemplo “legitima defesa”, quando é infligido ao animal dano físico por percepção de ofensa iminente à integridade física de outro animal, humano ou não humano), em investigação e estudos científicos (como por exemplo para as questões ligadas ao treino quando são utilizados métodos aversivos - coleiras estranguladoras, coleiras de bicos, coleiras de choque - cuja eficácia ou maior eficácia é actualmente questionável) ou outras fontes que possam clarificar a “legitimidade” da acção.
Afectação
grave e permanente da sua capacidade de locomoção
Este poderá ser considerado o trecho mais
desadequado do artigo 387º, já que começando por referir “privação de órgão ou
membro” de um modo geral, apenas confere pena se, no que respeita à função, for
a locomotora a afectada. Não questionando a necessidade de salvaguardar a
afectação da capacidade locomotora, parece haver uma falha no acautelamento de
qualquer outra função, eventualmente até com muito maior impacto na vida futura
do animal.
A “privação” de um órgão pode ser vista tanto
como a excisão física do órgão (exemplo enucleação do globo ocular), como perda da
sua função (exemplo visão). Ao especificar a capacidade locomotora o legislador
restringiu, aparentemente, o conceito de “privação de órgão ou membro” apenas à
sua perda física. Na prática isso poderá querer dizer que um trauma craniano,
causado por uma força contundente (por exemplo um pontapé) que lesione
irreversivelmente o globo ocular sem contudo levar à sua enucleação mas que diminua
ou prive o animal do sentido da visão, não poderá ser considerado para efeito
do numero 2 do artigo 387º, o que parece constituir uma manifesta assimetria de
critérios no que respeita à aplicação da pena.
NOTA:
O presente texto é um artigo de opinião da autora, não podendo ser considerado
como fundamentação legal, técnica ou outra para qualquer evento relacionado com
o tema em análise.
Anabela Santos Moreira
9 Agosto 2014