sábado, 9 de agosto de 2014

Revisitando o tema da Criminalização (Parte II)

(Artigo de Opinião)

Em qualquer área forense, não médica ou médica, humana ou veterinária, o conhecimento da lei é um factor fundamental.

Não querendo dizer que os peritos das inúmeras matérias forenses sejam especialistas em Direito, é necessário saber, pelo menos, os textos mais importantes directamente relacionados com a sua área e, na medida do possível, fazer uma interpretação à luz do Direito.

O texto das leis por vezes é ambíguo pela sua abrangência e por vezes é restrito, parecendo estar formatado para uma situação específica. Há vantagens e desvantagens tanto para a abrangência como para a restrição, sendo por isso necessário, estar muito consciente dos limites, reais ou aparentes, da lei e “construir um caso” que possa situar-se dentro da “janela” legal.  
 
O novo Título do Código Penal referente aos Crimes sobre Animais de Companhia, inicia-se com o artigo 387º “Maus tratos a animais de companhia”, que é tão abrangente quanto restrito nas suas poucas linhas, excluindo obviamente o facto que se referir apenas a animais de companhia. Vejamos algumas das questões que têm sido levantadas:
 
 
 
 
Maus Tratos

Como já referido anteriormente há uma certa consistência do que, no geral, se entende por mau trato sobre animais. Mais difícil poderá ser encontrar uma definição ou conceito que todos os envolvidos num processo legal possam utilizar como base. No entanto, o próprio Código Penal (CP), no seu artigo 152º-A, fornece uma indicação, que embora não relacionado com animais, ilustra muito bem o que é considerado mau trato sobre animais em diversos países onde estes actos são criminalizados.

A utilização, quase que integral, do texto deste artigo em situações em que a vítima seja um animal de companhia é coerente (salvaguardado o Principio da Legalidade) quer com o Tratado de Lisboa que reconhece que os animais são sensíveis (artigo 13º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia) e que, como seres sencientes, são capazes de sentir sensações e sentimentos de forma consciente, quer com o Código de Saúde dos Animais Terrestres da World Organization for Animal Health (Secção 7, Capítulo7.1) onde se reconhece as “Cinco Liberdades” de Brambilla como pilares do bem estar animal.

Outra questão também levantada pela abrangência do artigo está relacionada com a “tipologia”. Considerando que a tipologia está mais focada nas características da acção e resultados do que nas características da vítima, os conceitos utilizados para os humanos, ainda que também arrastando as polémicas que este assunto gera, podem facilmente ser aplicados aos outros animais, notando-se que, pontualmente, possa haver algumas especificidades, como é o caso da acumulação de animais (hoarding), a reprodução não planificada com objectivos comerciais (puppy mills) ou lutas de animais.
O mau trato (físico ou psicológico/emocional), a negligência (física ou psicológica/emocional) e o abuso sexual, são categorias passíveis de serem aplicadas quando as vítimas são animais não humanos.

 

Motivo Legítimo

Foi considerada a retirada desta adjectivação da redacção do artigo, no entanto ela acabou por fazer parte do texto final. Convém lembrar que o título do CP se refere apenas a animais de companhia, tornando-se surpreendente a sua inclusão, estabelecendo logo à partida que, para um animal de companhia, possa haver motivos legítimos para infligir dor, sofrimento e dano.
    Assim a ”legitimidade” terá que ser fundamentada nos factos ocorridos numa determinada situação (por exemplo “legitima defesa”, quando é infligido ao animal dano físico por percepção de ofensa iminente à integridade física de outro animal, humano ou não humano), em investigação e estudos científicos (como por exemplo para as questões ligadas ao treino quando são utilizados métodos aversivos - coleiras estranguladoras, coleiras de bicos, coleiras de choque - cuja eficácia ou maior eficácia é actualmente questionável) ou outras fontes que possam clarificar a “legitimidade” da acção.

 

Afectação grave e permanente da sua capacidade de locomoção

Este poderá ser considerado o trecho mais desadequado do artigo 387º, já que começando por referir “privação de órgão ou membro” de um modo geral, apenas confere pena se, no que respeita à função, for a locomotora a afectada. Não questionando a necessidade de salvaguardar a afectação da capacidade locomotora, parece haver uma falha no acautelamento de qualquer outra função, eventualmente até com muito maior impacto na vida futura do animal.
A “privação” de um órgão pode ser vista tanto como a excisão física do órgão (exemplo enucleação do globo ocular), como perda da sua função (exemplo visão). Ao especificar a capacidade locomotora o legislador restringiu, aparentemente, o conceito de “privação de órgão ou membro” apenas à sua perda física. Na prática isso poderá querer dizer que um trauma craniano, causado por uma força contundente (por exemplo um pontapé) que lesione irreversivelmente o globo ocular sem contudo levar à sua enucleação mas que diminua ou prive o animal do sentido da visão, não poderá ser considerado para efeito do numero 2 do artigo 387º, o que parece constituir uma manifesta assimetria de critérios no que respeita à aplicação da pena.
 

NOTA: O presente texto é um artigo de opinião da autora, não podendo ser considerado como fundamentação legal, técnica ou outra para qualquer evento relacionado com o tema em análise.
  

Anabela Santos Moreira
     9 Agosto 2014

terça-feira, 29 de julho de 2014

Condição Corporal - da Negligência à Crueldade

     A Condição Corporal é um dos pontos que deve sempre fazer parte da avaliação de um animal sujeito ou suspeito de ser ou ter sido sujeito a maus tratos.

É normalmente uma avaliação empírica, com apreciação visual externa do animal e que dá uma ideia geral se está com um “peso normal", ou pelo contrário está "magro" ou "gordo". Esta avaliação não é um instrumento exclusivo da área forense, mas é de grande utilidade principalmente quando se está a instruir um caso onde há suspeita de mau trato e/ou negligência continuadas.
De notar, no entanto, que nem sempre uma condição corporal anormal é sinónimo de mau trato, pode ser devida a uma condição médica e não a uma alimentação imprópria, em qualidade ou em quantidade. Por outro lado a utilização apenas do peso do animal pode não ser descritivo do seu estado uma vez que, tal como nos humanos, o peso por si só é pouco discriminativo. 

Uma forma rápida de avaliar a Condição Corporal é através de Escalas. Existem escalas para cada espécie animal e para a mesma espécie podem existir vários tipos. Em termos gerais as escalas pontuam a condição corporal de um animal consoante diversas características observadas, em que num extremo está uma condição corporal de extraordinária magreza (pontuação mais baixa da escala) e no extremo oposto a obesidade (pontuação mais alta na escala), representando o ponto médio uma condição normal (ver separador “Ligações Úteis”).
Deve haver cuidado na aplicação das escalas já que, para a mesma espécie, a existência de uma grande variedade de raças com conformações corporais diferentes pode levar a uma avaliação errada da condição corporal. Há ainda que ter em atenção outros factos, como por exemplo o tamanho do pêlo, em animais de pêlo curto uma inspecção visual poderá ser suficiente, mas o mesmo pode não acontecer com animais de pêlo comprido, tornando-se necessário palpar o animal de modo a que a atribuição da pontuação seja correcta. Nos casos em que os animais apresentem o pêlo mal tratado e emaranhado, muitas vezes torna-se necessária a tosquia antes da avaliação definitiva.
Embora tabelas com as escalas sejam uma ajuda visual bastante grande, a sua apresentação deve ser sempre complementar a uma descrição cuidada e detalhada da condição corporal do animal, quando da realização do relatório Médico Legal Veterinário (Clínico ou Tanatológico). 


Nas sociedades ocidentais, o resultado mais comum de mal nutrição em animais domésticos de companhia é a obesidade. Não levando em conta causas médicas, muitas vezes esta condição é devida a uma falta de informação do detentor/cuidador sobre as necessidades nutricionais do animal tendo em atenção a sua raça, idade, actividade, etc.
Sabendo que a obesidade é um factor de risco para inúmeras doenças, que é muitas vezes impeditiva de actividades normais à espécie e que não depende do animal a escolha de alimentos que ingere, a obesidade em animais de companhia começa a ser considerado actualmente como uma forma de negligência.
No entanto para ser considerado passível de acção legal é necessário qe estejam reunidos alguns factores, nomeadamente que o detentor/cuidador tenha sido informado dos riscos para a saúde do animal associados a uma dieta desadequada, tenha havido falha no compromisso de seguir um plano de reequilíbrio da condição do animal e, o mais importante, o sofrimento que o animal tem/teve devido à sua condição e à falta de aderência ao plano estabelecido pelo detentor/cuidador. 


No outro extremo da escala de condição corporal encontra-se o estado de emaciação (extrema magreza). De realçar mais uma vez que nem sempre esta condição corporal é devida a uma alimentação desadequada, sendo assim importante saber quais as causas, excluindo as relacionadas com doenças.
Em casos de negligência, em que a única causa para o estado emaciado do animal é uma dieta desadequada, torna-se útil e quase indispensável fazer a documentação da melhoria da condição corporal ao longo do tempo após ser oferecida ao animal uma dieta equilibrada, em quantidade e qualidade, e sem necessidade de grande intervenção médica.
Uma dieta pode ser desequilibrada por vários motivos onde se inclui a privação de alimento ou alimentação intermitente, mas também pela falta de qualidade ou por ser inadequada para a espécie/faixa etária. Embora possa parecer de pouca relevância o detalhe destes factos, na verdade, para um processo legal, depende muitas vezes dele o veredicto e a medida da pena. Assim é importante num caso, por exemplo, de busca e apreensão que durante a análise do local sejam documentadas as evidências que possam corroborar ou excluir a causa da desadequação da dieta.
Quando existe privação de ingestão de alimento o corpo vai tentando equilibrar esta falta com a utilização das suas reservas. O desaparecimento do tecido adiposo (gordura) é o sinal mais visível exteriormente, começando por desaparecer em “zonas de reserva” mas, no caso da situação persistir, pode chegar a haver uma diminuição dramática da gordura até da medula óssea. No entanto antes de chegar a este ponto já outros órgãos e músculos foram lesados e a morte pode sobrevir sem que tenham sido atingidos patamares visíveis de subnutrição extremos.
No entanto, convém ter em atenção que apesar de um animal poder morrer antes das suas reservas terem sido esgotadas, quando há uma diminuição da gordura da medula óssea é normalmente um indício de má nutrição e essa evidência pode ser apreciada em exames histopatológicos posmortem, mesmo que o cadáver esteja em adiantado estado de decomposição que impeça todos os outros métodos de avaliação.
Apesar da evidenciação de uma fraca condição corporal não ser visualmente difícil, deve ser sempre suportada e realçada pela referência à dor e sofrimento experienciado pelo animal durante o processo, que normalmente é longo.

 
 
Como referido antes, no caso da vítima estar viva, a documentação da sua recuperação ao longo do tempo é um factor de impacto importante e deve ser providenciada documentação fotográfica que possa ilustrar essa recuperação. “Uma imagem vale mais do que mil palavras”, e embora um caso de negligência não se possa fundamentar apenas em imagens “antes e depois”, elas são, sem dúvida, uma belíssima ilustração para os factos relatados.
  
Anabela Santos Moreira
     29 Julho 2014
   
Fontes fotográficas:
     OBIE, o cão obeso


domingo, 27 de julho de 2014

Revisitando o tema da Criminalização (Parte 1)


(Artigo de Opinião)
 

No dia 25 de Julho de 2014 pelas 14 horas a Assembleia da República aprovou, por maioria, o texto que, após promulgação pelo Presidente da República, se constituirá em Lei que modificará o enquadramento legal dos maus tratos sobre animais de companhia.
Depois de várias intervenções e alterações às propostas iniciais, apresentadas por dois grupos parlamentares, e aprovadas na generalidade em Dezembro de 2013, o articulado final do documento aprovado, com 4 artigos, incide directamente sobre duas peças legislativas existentes: o Código Penal e a Lei 92/95 de 12 de Setembro.
 
Durante todo o período de discussão levantaram-se críticas, muitas vezes com fundamentos opostos. Apesar disso fica a ideia que a sociedade civil concorda com a criminalização dos maus tratos sobre animais de companhia, com a introdução da pena de prisão para este tipo de ilícitos e que este enquadramento é uma necessidade de uma sociedade moderna. Há também a noção que a legislação é dinâmica e que é passível de ser modelada ao longo do tempo, como de resto se verifica no próprio Código Penal português com as sucessivas alterações e inserções.
 
Olhando para o articulado na nova lei (ver abaixo a redacção final) um pouco mais detalhadamente:
 
O aditamento ao Código Penal (CP) implica a inserção de um novo TÍTULO, o VI, dedicado aos animais de companhia.
Actualmente o CP tem no seu 2º Livro (designado como Parte Especial), cinco títulos (crimes contra as pessoas, crimes contra o património, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, crimes contra a vida em sociedade e crimes contra o estado). De notar que no Título IV, dos crimes contra a vida em sociedade, tem no seu Capítulo III (dos crimes de perigo comum) vários artigos relacionados com a natureza e ambiente (nomeadamente 274º, 278º, 279º e 279º-A, 280º, 281º) onde são referidos, de algum modo, animais.
Atendendo à crítica que a introdução deste novo título cria uma assimetria estrutural no código, poderemos concordar, mas por via da assimetria já existente, que relega para artigos, secções e capítulos dispersos algo que, actualmente são pontos essenciais das sociedades modernas, a Natureza e o Ambiente, consignados inclusivamente na Constituição da República Portuguesa (VII Revisão Constitucional, 2005) no seu artigo 66º (Ambiente e qualidade de vida) que refere no seu ponto 1 “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender”.
Deste modo, parece um ponto de partida interessante a criação de um título no CP dedicado a animais de companhia, como primeira pedra de uma restruturação que dê ao Ambiente e Natureza o relevo que deve ter, a exemplo aliás do que acontece noutros países, amiúde citados como modelo para esta alteração.
Claro que os animais de companhia, na sua esmagadora maioria canídeos e felídeos domésticos, são muito mais, para os seus detentores e sociedade em geral, do que simples “coisas da natureza”, já que o vínculo que se estabelece entre os humanos e estes animais domésticos, ultrapassa em muito a esfera do físico e palpável, do dever e do direito, são muitas vezes componentes essenciais de uma vida saudável, no campo dos afectos e equilíbrio emocional.
 
 
A redacção final, tal como foi aprovada na especialidade e aceite pelo plenário, será a seguinte:
 
Artigo 1º - Aditamento ao Código Penal
É aditado ao Código penal (…) o novo TÍTULO VI, designado “Dos crimes contra animais de companhia”, composto pelos artigos 387º a 389º, com a seguinte redacção:

“Título VI – Dos crimes contra animais de companhia
Artigo 387º
Maus tratos a animais de companhia

1 – Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias

2 – Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou afectação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias. 

Artigo 388º
Abandono de animais de companhia

Quem, tendo o dever de guardar vigiar ou assistir animal de companhia, o abandonar, pondo desse modo em perigo a sua alimentação e a prestação d cuidados que lhe são devidos, é punido com pena de prisão até seis meses ou pena de multa até 60 dias.
 

Artigo 389º
Conceito de Animal de companhia

1 - Para efeitos no disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia.

2 – O disposto no número anterior não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agro-industrial, assim como não se aplica a factos relacionados com a utilização para fins de espectáculo comercial ou outros fins legalmente previstos.”
 
Artigo 2º - Alteração à Lei nº 92/95, de 12 de setembro
São alterados os artigos 8º, 9º e 10º da Lei 92/95, de 12 de setembro, sobre protecção aos animais, alterada pela lei nº 19/2002, de 31 de julho, que passam a ter a seguinte redacção 

“Artigo 8º
[…]

Para efeitos da presente lei considera-se animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia 

Artigo 9º

As associações zoófilas legalmente constituídas têm legitimidade para requerer a todas as autoridades e tribunais as medidas preventivas e urgentes necessárias e adequadas para evitar violações em curso ou iminentes da presente lei.
 
 
Artigo 10º

1 – As associações zoófilas podem constituir-se assistentes em todos os processos originados ou relacionados com a violação da presente lei e ficam dispensados de pagamento de custas e taxa de justiça, beneficiando do regime previsto na Lei nº 83/95, de 31 de agosto, com as necessárias adaptações

2 – Às associações zoófilas pode ser atríbuido o estatuto das organizações não-governamentais do ambiente, nos termos previstos na Lei nº35/98, de 18 de julho.
 
 
Artigo 3º - Alterações sistemáticas
Os artigos 9º e 10º da Lei nº 92/95, d 12 de Setembro, alterada pela lei nº19/2002, de 31 de julho e pela presente lei, passam a integrar o capítulo IV, com a designação “Associações zoófilas”
 
 
Artigo 4º - Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no primeiro dia do 2º mês seguinte ao da sua publicação 

(transposição do texto do ofício nº871/XII/1ª- CACDLG/2014, DE 25-07-2014)


 
Anabela Santos Moreira
27 Julho 2014
 
 
 

 

sábado, 12 de julho de 2014

"Mau trato? hmm... Será?"

   Quando se fala de mau-trato sobre animais, do mesmo modo que sobre humanos, visualizam-se situações em que as acções sobre o animal resultam em lesões exuberantes, normalmente traumáticas.
Felizmente a maior parte dos casos de lesões traumáticas vistas na prática clínica diária, não são resultado de agressão ao animal, no entanto é de esperar que pelo menos uma vez na sua vida profissional o Médico Veterinário seja confrontado com uma situação de mau trato. O mau trato pode ser evidente, como tal, ser confundido com lesões acidentais ou não ser evidente embora exista.

Porque é que nem sempre as situações de mau-trato são reconhecidas pelo Médico Veterinário?
  Uma das razões apresentadas, dependente de nós próprios, é termos dificuldade em aceitar (bloqueio emocional) que alguém seja cruel ao ponto de infligir propositadamente lesões a um ser vivo que coabita ou partilha uma vivência comum, seja ele humano ou não-humano. Do mesmo modo que a Violência Doméstica ou o Mau Trato de Menores ou de Idosos é algo conhecido por todos, num contexto geral, mas mais difícil de reconhecer se implicar pessoas mais próximas do círculo pessoal ou profissional: um familiar, um amigo, um cliente habitual.
  Outra razão é a crença que um detentor não recorrerá aos serviços médico-veterinários depois de ele próprio ter agredido o animal. Na maioria das vezes, mais cedo ou mais tarde e por razões diversas, o animal acaba por ser submetido a uma intervenção clínica, ainda que nem sempre seja o agressor a levá-lo, podendo no entanto ser uma pessoa próxima, do animal e/ou do agressor. Neste último caso podemos inclusivamente estar perante uma situação em que a pessoa que leva o animal, seja ela própria vítima de maus tratos.
  Mesmo que o Médico Veterinário esteja alerta, um evento de abuso pode passar despercebido.

  O Índice de Suspeita (Index of Suspicion) auxilia o Médico Veterinário a estimar, ainda que de modo empírico, a probabilidade de estar perante uma ou várias lesões de origem não acidental (Lesão Não Acidental - LNA).
  No entanto é preciso ter em atenção que qualquer um destes factores em separado e por si só não têm significado e, mesmo que coexistam vários, é necessário fazer uma cuidadosa contextualização do evento.

Factores relacionados com a História Clínica e Lesões:
- A história é discrepante com a lesão apresentada (exemplo: fractura de osso longo, história de atropelamento - normalmente fracturas por flexão ou compressão, diagnóstico imagiológico imagem consistente com fractura por torção mais raro de acontecer  nesse tipo de acidentes)
- A história é inconsistente, mudando com o tempo ou com a pessoa que a conta
- Outras lesões ou morte de animais no mesmo agregado familiar ou do mesmo dono
- Ingresso por lesão idêntica, repetidas vezes
- Lesões não usuais
- Lesão não explicada, aparentemente sem conhecimento de como aconteceu
- Lesões em tempos diferentes de cicatrização

Atribuição de culpa:
- O cliente/detentor pode assumir a acção e culpa do abuso
- O cliente/detentor pode assumir que existiu abuso e atribuir a acção a uma pessoa próxima (companheiro, filho, amigo)
- O cliente/detentor pode assumir que existiu abuso e atribuir a acção a uma pessoa estranha (estranho, vizinho)
- O cliente/detentor pode assumir que existiu abuso mas recusar a dizer quem o perpetrou

  De notar que neste ponto de "atribuição de culpa" ela pode ser feita de boa fé, mas também pode ter uma intenção maliciosa de acusar terceiros, por isso convém relembrar, mais uma vez, que a primeira responsabilidade do Médico Veterinário é para com o animal, e embora possa ter suspeitas de mau-trato, não é da sua competência prová-la apenas, se necessário, apresentar evidência de que ocorreu e muito menos julgá-la.

Perfil do detentor/cliente:
- Cliente novo ou conhecido por procurar diversos médicos-veterinários
- Discrepâncias no nome, morada ou registo/propriedade do animal
- Conhecimento que possui vários animais apresentando uma grande rotatividade nos animais que detém
- Pode provir de qualquer classe social
- Estudos apontam para uma maior frequência do agressor ser masculino
- As crianças e jovens podem ser agressores
- Síndrome Munchausen by Proxy (Perturbação Factícia Imposta sobre Outro) também ocorre tendo um animal como vítima

Comportamento do detentor/cliente:
- Agressivo e/ou evasivo durante a recolha da história, ou quando questionado directamente sobre mau-trato
- Falta ou diminuída preocupação pelo estado do animal ou sobre a recuperação
- Comportamento estranho, no geral
- Demora em procurar assistência médico-veterinária
- Se presente na consulta o detentor legal e outros membros da família, um deles pode estar mais nervoso ou apresentar comportamento estranho
- Conhecimento de alcoolismo, uso de estupefacientes e doença mental (detentor ou círculo de pessoas próximas do animal)

Perfil e Comportamento do animal:
- No Reino Unido os animais (de estimação) em maior risco são canídeos machos com menos de dois anos, e felídeos de todas as idades. Não há estudos em Portugal, podendo variar a espécie, género e idade. 
- Comportamento de medo perante o detentor/cliente
- Comportamento de medo para com as pessoas no geral
- Comportamento de satisfação quando separado do detentor/cliente
- Mudança de comportamento com e sem o detentor presente
- Atitude de subjugação ou pelo contrário excessivamente agressivo


Embora, como já referido, não ser da competência do médico veterinário nem investigar e muito menos "julgar" casos de mau-trato, é óbvio que do desempenho das suas funções pode resultar, em algum momento, o confronto com situações de abuso e o seu envolvimento no esclarecimento dos factos.
Quando ele é o "descobridor" do abuso no desempenho das suas funções e é instigado a tomar uma decisão (algo limitada em Portugal, sob o ponto de vista legal, por via do Código Deontológico dos Médicos Veterinários) deve ter em atenção que nenhum caso é preto ou branco, existindo um gradiente de "cinzentos" que é necessário ponderar.


 
 
Anabela Santos Moreira
12 Julho 2014
 

sábado, 5 de julho de 2014

" The LINK "


Tomei conhecimento da ligação entre crueldade animal, abuso de menores, violência doméstica e abuso de idosos durante a avaliação psicológica num caso de abuso sexual de um menor. O rapaz estava mudo de pânico, até lhe ser perguntado se havia animais na casa. Depois de começar a falar acerca do que tinha acontecido ao cão, conseguiu revelar o que tinha acontecido com ele. A presença do cão foi verificada e usada como evidência e o caso foi julgado com sucesso”* (Barbara W. Boat).
Esta experiência é relatada no prólogo do manual “Understanding the Link between Violence to Animals and People: AGuidebook for Criminal Justice Professionals”, de Allie Phillips da National District Attorney Association (NDAA) e publicado em Junho 2014.
Na continuação do prólogo, Barbara Boat refere ainda que nos últimos 25 anos tem havido um enorme progresso neste campo listando alguns pontos e actuações que têm contribuído para esse progresso. De notar que em Portugal, tanto quanto é dado a conhecer ao cidadão comum, nenhuma das “conquistas” referidas são sequer motivo de discussão, seja na esfera pública seja na científica, nem mesmo através de campanhas de divulgação.
 
O que é o Link?
O Link (elo/relação/ligação) é uma expressão que, quando usada no contexto do mau trato animal, se refere à ligação entre vários tipos de violência e mau trato, independentemente do tipo de vítima. A expressão anglo-saxónica é actualmente utilizada universalmente mesmo em comunidades/países em que o inglês não é a língua materna.
O Link é relação que se pode traçar entre a ocorrência de abuso ou negligência sobre um animal (incluindo agressão sexual, lutas e acumulação) e outros crimes no contexto familiar tais como negligência e abuso de menores (incluindo abuso sexual e físico), violência nas relações de intimidade (incluindo stalking e violação), negligência e abuso de idosos (incluindo exploração financeira).*
No entanto o Link não se esgota na esfera familiar. A violência interpessoal e outro tipo de crimes também estão incluídos nesta relação nomeadamente homicídio, armas ilegais, drogas ilícitas, fogo posto, violação, assaltos.
 
Em Portugal devido à aproximação da votação, na Assembleia da República, de legislação que pretende instituir a criminalização do Mau Trato Animal (Portugal é dos poucos países da UE em que o Mau Trato Animal não é crime, é apenas delito sujeito a contra-ordenação) assiste-se a uma discussão mais alargada do assunto, e não é raro encontrar-se comentários, nas redes sociais e nas notícias dos órgãos de comunicação social, que denotam surpresa e algum desagrado acerca destas medidas, aparentemente duras, já que se trata “apenas de um animal”.
Este tipo de justificação ou argumento não é actualmente aceitável, não só porque os animais são seres sencientes, sentindo dor, fome, sede, frio, alegria, tristeza, medo mas também porque o mau trato dos animais faz parte de um continuum de violência que inclui os seres humanos.
 
É necessário que o mau trato animal seja levado a sério, não só pelo dever que os humanos têm de proporcionar as melhores condições a seres sencientes que são dependentes deles devido à domesticação, mas também porque, quando existe, é um factor de risco para outras situações de abuso e de violência futura.
 
Anabela Santos Moreira
5 Julho 2014
 


* Phillips, A., “Understanding the Link between Violence to Animals and People: A Guidebook for Criminal Justice Professionals”, 2014, National District Attorney Association

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Criminalização do Mau Trato Animal


 

As propostas de projecto Lei (474/XII e 475/XII) que criminalizam o mau trato animal foram apresentados e aprovados na generalidade pela Assembleia da República em Dezembro de 2013. Estes projectos, que serão dentro de poucas horas discutidos e votados na especialidade na Comissão Parlamentar dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, prevêem pena de prisão para ilícitos relacionados com maus tratos sobre os animais, que inclui também o abandono.
 Sobre este assunto foram pedidos pareceres aos Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público e à Ordem dos Advogados. A discussão na especialidade deverá ser efectuada em conjunto com uma proposta mais antiga sobre o Estatuto Jurídico dos Animais (173/XII/1ª), que baixou à comissão competente sem nunca ter sido apresentada ao plenário da Assembleia da República. (ver aqui as ligações para as propostas aprovadas e os pareceres emitidos).
 A criminalização dos maus tratos sobre animais é o enquadramento legal corrente em grande parte dos países, nomeadamente nos da União Europeia, esperando-se assim que Portugal siga a tendência generalizada e institua também esta moldura jurídica.

O conceito de “criminalização” está relacionado com a pena a aplicar, tendo cada país uma caracterização própria. Isto quer dizer que, mesmo dentro da União Europeia, o que é considerado crime, o que é considerado animal (de companhia, neste caso) e as penas máximas a aplicar podem variar, não havendo harmonização por falta de medidas legislativas europeias comuns.
Olhando para os países em que a criminalização está instituída há mais tempo, não é possível perceber se essa criminalização conduziu à diminuição do mau trato sobre os animais, certo é que permite actuar sobre os agressores de um modo diferente e, pelo menos em teoria, enviar aos eventuais infractores uma mensagem dissuasiva mais forte.
Sendo a liberdade um direito fundamental, a sua privação deverá ser judiciosamente aplicada, ainda que, nestes casos se preveja, que a pena de prisão possa ser transformada em pena de multa.
A transição de um normativo civil ou contra-ordenacional para um quadro penal, implicará da parte de todas as entidades envolvidas uma mudança de paradigma no que respeita à apreciação destes eventos: as autoridades competentes de fiscalização (GNR, PSP, Polícia Municipal,…) terão que proceder de modo mais incisivo sobre estes ilícitos; as autoridades judiciárias terão que considerar a abrangência e impacto que estes eventos têm na sociedade; os Médicos Veterinários terão que avaliar os casos de mau trato sob um ponto de vista médico-legal; os cidadãos, no geral, terão que entender que a instrução de um processo no âmbito penal é diferente de uma mera contra-ordenação.

Espera-se ainda que a criminalização do mau trato animal tenha outro aspecto positivo na sociedade portuguesa, que é trazer para a discussão pública todas as relações que existem com ilícitos criminais graves: violência interpessoal, violência nas relações de intimidade, abuso sexual, abuso de menores, abuso de idosos, delinquência infantil e juvenil, drogas ilícitas, armas, doenças mentais, etc.
As evidências dessas relações são cada vez mais fortes e estão actualmente suficientemente documentadas, ao ponto de o mau trato animal ser considerado, em muitos países, como um factor de ponderação na avaliação de risco de violência (ver aqui testemunho de um investigador do FBI). Infelizmente Portugal não só não é um desses países, como existe um desconhecimento generalizado sobre o assunto da parte dos profissionais de diversas áreas.

A criminalização do mau trato animal é uma medida legislativa importante e necessária, e o quadro normativo que a instituirá deverá ser o mais claro e transparente possível, de modo a evitar a utilização de subterfúgios e pormenores técnicos, que torne a sua aplicação tão complicada que deixará de ter efeitos práticos.
 
Anabela Santos Moreira
2 Julho 2014

domingo, 5 de janeiro de 2014

Medicina Veterinária Forense e Mau Trato Animal

Uma das áreas da Medicina Veterinária Forense é a que respeita ao mau trato animal. Embora a expressão “mau trato animal” possa ser, para a maioria das pessoas, um conceito universal, tal não acontece.
Um dos obstáculos à sua “universalização” relaciona-se com diferenças culturais que se reflectem na percepção do que é mau trato. Outro obstáculo refere-se ao entendimento do que é um “animal”, não no sentido biológico do termo, mas sim no sentido do enquadramento legal.
Estas diferenças são de importância crucial implicando, na maior parte das vezes, leis diferentes de país para país, ou mesmo de região para região dentro do mesmo país, como acontece por exemplo nos Estados Unidos, o que obriga os profissionais desta área a um conhecimento robusto da legislação aplicável. 
 
Um pouco de História…
Embora na actualidade se fale, debata e legisle cada vez mais sobre bem-estar e protecção animal esta é uma preocupação da sociedade moderna com largas dezenas de anos, materializada em 1824, na Inglaterra, com a criação da Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals (RSPCA) e em 1866, nos Estados Unidos da América, com a American Society for the Prevention of Cruelty to Animals (ASPCA). Em Portugal, foi fundada a Sociedade Protectora dos Animais (SPA) em 1875 pelo Conselheiro José Silvestre Ribeiro, com um impacto na sociedade portuguesa actual bem diferente do das suas congéneres, nas comunidades em que se inserem.
A uma década da primeira associação criada para a prevenção da crueldade sobre os animais comemorar o 2º centenário, os  direitos, o bem-estar e o mau trato dos animais continuam a ser temas actuais, debatidos com paixão, por vezes discutidos com pragmatismo outras vezes com abordagens mais filosóficas.
 
 
Como se define Mau Trato?
Para Balkin, Janssen & Merck(1) o mau trato ou crueldade pode ser qualquer acto, desde importunar até à tortura, de modo intencional ou por negligência, não se cingindo apenas à comissão do acto mas também à omissão de cuidado adequado.
Este leque alargado de situações, por um lado, permite grande latitude no que, teoricamente, se pode considerar mau trato, por outro, implica que cada caso tenha que ser individualmente analisado, necessitando de um grande cuidado na sua investigação, principalmente quando é criminalizado pelo quadro normativo.
 
 
Tipificação do Mau Trato Animal
Em termos gerais podem agrupar-se as situações de mau trato animal em três grandes grupos:
                   Negligência
                   Acumulação
                   Abuso
 
Negligência. Neste grupo existem diversas situações que podem ir desde a negligência simples, não intencional, muitas vezes com o objectivo de ajudar ou “agradar” ao animal (administração de medicamentos sem aconselhamento médico veterinário, pôr ao dispor alimentos perigosos,...) mas que podem pôr em risco a saúde do animal ou negligência grave, cruel ou arbitrária (não providenciar abrigo, alimento ou água, não proporcionar auxílio médico-veterinário a um animal que se encontre manifestamente em sofrimento,...). Este tipo de mau trato é frequentemente resultado de omissão e não de comissão de um acto.
Acumulação. Verifica-se quando o número de animais detidos por um sujeito, ultrapassa largamente quer a capacidade do espaço físico, quer a capacidade económica ou de cuidado, sendo os animais submetidos a condições que não são as mais adequadas ao seu bem-estar. Muitos destes casos caiem no domínio da negligência, estando muitas vezes associados a incapacidades do próprio detentor, sejam físicas ou mentais.
Abuso. Neste grupo que, por norma, não oferece tantas dúvidas quanto a ser classificado como mau trato, incluem-se situações com grau de crueldade e violência diferentes:
Abuso intencional – quando há intenção de provocar dor, lesão, sofrimento ou mesmo morte ao animal. Pode ser perpetrado de modo pontual ou continuado, com intenção de atingir o animal ou como modo de coacção sobre terceiros, o que pode acontecer, por exemplo, num contexto de violência doméstica.
Abuso organizado – neste grupo incluem-se as situações em que o mau trato é cometido sobre o animal com o objectivo de obter vantagem, muitas vezes económica. Exemplos clássicos são as lutas de animais ou a reprodução exaustiva e não planificada com o intuito de comércio da descendência (fábricas de cachorros, puppy mills).
Abuso ritual – onde os animais são sujeitos a maus tratos em rituais, normalmente não aceites culturalmente pela comunidade.
Abuso sexual – utilização de animais para satisfação sexual do sujeito (detentor ou não) que, na sua forma mais grave, pode resultar em morte do animal por extensas lesões internas.
 
Tendo em atenção as variadíssimas situações em que pode ser considerada a existência de mau trato é de primordial importância:
   O conhecimento do quadro normativo aplicável, bem como as suas excepções;
   O conhecimento de procedimentos básicos em investigação forense;
   A capacidade de trabalhar em equipa, previligiando a colaboração interdisciplinar, indispensável na área forense.
 
Anabela Santos Moreira
5 Janeiro 2014
 


(1) Balkin, Janssen & Merck, “The legal system: the veterinarian’s role and responsibilities” in “Veterinary Forensics – Animal Cruelty Investigations”, 2013, 2ªEd., editado por Melinda Merck, Wiley-Blackwell